domingo, 17 de março de 2013

Caricaturas em O Cortiço

O Cortiço - Aluísio de Azevedo

O Cortiço (1890), expressão máxima do Naturalismo Brasileiro, apresenta como personagem principal João Romão, português que pode ser encarado como metáfora do capitalismo selvagem, pois tem como principal objetivo na vida enriquecer a qualquer custo. Ambicioso ao extremo, não mede esforços, sacrificando até a si mesmo. Veste-se mal. Dorme no mesmo balcão em que trabalha. Das verduras de sua horta, come as piores: o resto vende.

Mas sua ascensão não se vai basear apenas na autoflagelação. Explora descaradamente o próximo. O vinho que vende aos seus clientes é diluído em água (fica aqui nas entrelinhas a idéia de que o brasileiro está destinado a ser explorado pelo estrangeiro). Mas o mais sintomático de seu caráter está na sua relação com Bertoleza.

Era essa uma escrava que ganhava a vida vendendo peixe frito diante da venda de João Romão. Os dois tornam-se amantes. O protagonista aproveita as economias dela e, mentindo que havia comprado a sua carta de alforria, investe em seus próprios negócios, construindo três casinhas, imediatamente alugadas.

Com o tempo, de três chegam a 99 casinhas (na realidade, o progresso é devido não só ao tempo. Há também o dinheiro dos aluguéis que vai sendo investindo, numa postura claramente capitalista, e também o furto que João Romão e sua amante vão realizando do material de construção dos vizinhos), tornando-se o Cortiço São Romão (a maneira como Aluísio Azevedo descreve a origem e o estágio atual desse fervilhar tem claro gosto naturalista. No primeiro aspecto, as condições do meio – água à vontade – permitiram que a moradia coletiva se desenvolvesse. Existe, nesse tópico, uma forte influência dos avanços que a Biologia estava tendo na época. Quanto ao segundo aspecto, a maneira como são descritos os moradores em sua agitação, semelhantes a larvas minhocando num monte de esterco, é de uma escatologia tradicional a essa escola literária, rebaixadora ou mesmo aniquiladora da nobreza humana, ao comparar degradantemente suas personagens a animais, num processo conhecido como zoormorfismo). Aqui está a salvação do romance. Aluísio Azevedo tem deficiências no trato de personagens, tornando-as psicologicamente pobres, o que pode ser desculpável, pois o Naturalismo tem uma predileção por tipos. Essa característica vem a calhar a um autor que se notabilizara como caricaturista.

De fato, os moradores do cortiço vão formar uma galeria de tipos extremamente rica, colorida, autorizando-nos a dizer que essa coletividade é que se torna a melhor personagem da obra. A moradia coletiva comporta-se como um só personagem, um ser vivo.

Nesse lugar, encontramos inúmeras figuras, cada uma representando um mergulho nas diferentes taras (o enfoque das patologias sexuais, apresentando o homem com um prisioneiro dos instintos carnais – bem longe da imagem idealizada de racionalidade e nobreza – é uma das predileções do Naturalismo) e facetas da decadência humana.

Há vários exemplos, como Neném, adolescente negra de libido explosiva que acaba perdendo a virgindade nas mãos de um empregado de João Romão. Cai na vida. Existe também Albino, de tendências homossexuais, ou então Machona, de pulso firme, tanto denotativa quanto conotativamente. Botelho, homem corroído pelas hemorróidas (a menção a esse detalhe, degradante, é típica do Naturalismo) e pelo pior tipo de materialismo – o alimentado pela cobiça de quem não tem nada. Pombinha, moça afilhada da prostituta Léonie, que é responsável também por sua iniciação sexual. A menina é noiva de João da Costa. Seu casamento seria a garantia de saída daquela moradia pobre. Mas sua mãe tinha escrúpulos que adiavam o casamento: enquanto a filha não se tornasse mulher – ou seja, tivesse sua primeira menstruação – não podia casar-se. No entanto, a menarca estava por demais atrasada, o que se transformava num drama acompanhado pelos moradores do cortiço, que a tratavam como a flor mais preciosa (é também típica do Naturalismo essa força que os aspectos biológicos exercem sobre o caráter da personagem. Enquanto não tem sua primeira menstruação, é menina pura. Tanto que, uma das poucas alfabetizadas e dotadas de tempo ocioso, dedica-se a ler e a escrever as cartas dos diversos moradores do cortiço, entrando em contato com a podridão das paixões humanas. Mas isso não macula sua inocência até o momento em que, mulher – ou seja, já capaz de menstruar e, portanto, cumprir seu papel biológico de reprodução –, adquire maturidade para entender o que se passa entre aquela multidão de machos e de fêmeas. Com nojo de tudo o que via, desencanta-se). No fim, vira lésbica e cai na vida, principalmente por influência de sua iniciadora, Léonie (outra leitura interessante que se pode fazer em O Cortiço é captar o destino a que é submetida a mulher. Ou se torna objeto do homem, ou sabe seduzir, de objeto tornando-se sujeito, ou despreza-o totalmente. Qualquer uma dessas posições é, na óptica da obra, degradante).

Mas a mais famosa personagem é a mulata Rita Baiana. Flagramo-la voltando de uma temporada com seu mais novo namorado, Firmo. Ela representa a explosão de sensualidade de um tipo brasileiro (nesse ponto, há uma famosa característica do Naturalismo: o Determinismo. O comportamento humano, de acordo com essa doutrina filosófica, estaria condicionado a fatores de raça, meio e momento. Assim, Rita Baiana, como mulata e brasileira (raça e meio), seria sensual. Uma leitura mais rigorosa hoje entenderia essa doutrina como uma pseudociência a disfarçar um preconceito).

Como é adorada pelos homens, mulheres e crianças do cortiço, seu retorno é marcado por imensa festa. É nesse momento que acaba encantando o coração de Jerônimo, português recém-chegado à moradia, que viera para trabalhar na pedreira de João Romão. Sua paixão faz com que se abrasileire imediatamente. Perde o vigor típico de sua raça para o trabalho. Passa até a gostar de nossa bebida e comida (mais uma vez, o meio influenciando a personalidade. Mais uma vez, o Determinismo, mesclado a visões preconceituosas).

Sua paixão vai esbarrar nos brios de Firmo, que chega a se desentender com o português. Num golpe de capoeira, rasga a barriga do estrangeiro com uma navalha. Situação crítica, passa a morar num outro cortiço na mesma rua, apelidado de Cabeça de Gato (havia quem dissesse que esse segundo cortiço pertencia a alguém da nobreza, talvez até ao Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel, o que revelaria a existência de gente que se beneficiava com o processo desorganizado de urbanização no Brasil, gerador de sub-moradias como os cortiços), o que acirra a rivalidade entre as duas moradias.

A situação piora quando Jerônimo manda matar a pauladas o seu rival. Enquanto foge com Rita Baiana (abandonando descaradamente sua esposa), as duas moradias mergulham num conflito. O Cortiço São Romão sofre a invasão dos moradores do Cabeça de Gato, que só é interrompida por causa de um incêndio que eclode.

Facilmente João Romão, rico, refaz o seu cortiço. Aliás, está com outros planos: quer subir o nível de seus moradores. É um reflexo de seu desejo: quer aceitação social. Para tanto, além de ativar uma vida social, sonha em se casar com a filha de seu vizinho, Zulmira.

Esse nobre morador era também português, há mais tempo estabelecido no Brasil. Seu nome: Miranda (assim como na relação entre Léonie e Pombinha, no caso Miranda e João Romão há uma demonstração do Determinismo. Personagens submetidas às mesmas influências acabam tendo o mesmo destino). Havia-se mudado para a periferia na vã esperança de que, longe do Centro, sua esposa iria deixar de traí-lo. Inútil. Estela (esse era o nome dela) era obcecada por sexo, fazendo-o indiscriminadamente com os empregados e até com gente mais jovem, como Henriquinho, moleque que fora hospedado pelo marido. Fazia-o até com o marido, mesmo brigados. De noite, os dois entregavam-se aos instintos; de dia, nem se falavam (a maneira como Miranda se utiliza de sua esposa é de uma escatologia de claro gosto naturalista: usa a mulher como alguém que recorre a uma escarradeira).

Miranda enxergava João Romão como inimigo provavelmente porque, além de estar com inveja de seu enriquecimento volumoso, sentia-se incomodado com aquela gentalha agitada grudada nos fundos de sua casa. No entanto, entra em acordo de interesses com seu agora ex-inimigo. Miranda tem a nobreza de que João Romão necessita. João Romão tem o dinheiro de que Miranda necessita. Nada mais conveniente do que a união de famílias.

O problema era Bertoleza. Sem o mínimo escrúpulo, João Romão denuncia aos herdeiros do antigo dono dela o paradeiro dessa escrava fugida. Só que ele não contava que ela, quando da visão dos soldados, fosse rasgar sua própria barriga com a mesma faca com que tratava peixe, estrebuchando como uma anta até morrer (essa cena final, dotada de inúmeros traços degradantes, é um dos primores do estilo naturalista. Vale a pena ser lida).

Ironicamente, assim que essa espantosa cena se desenrola, pára diante da casa de João Romão uma carruagem. Dela descem pessoas que vinham entregar uma homenagem ao protagonista, por ter-se mostrado um homem preocupado com a situação do negro e a causa abolicionista. Um final irônico, bem ao sabor de Eça de Queirós, seu grande mestre (há quem enxergue nessa filiação queirosiana uma explicação para os lusitanismos tão comuns nos textos de Aluísio Azevedo. Na realidade, a justificativa para esse fato é outra. Em primeiro lugar, esse autor naturalista é filho de portugueses, o que já faria compreensível o emprego de expressões típicas da variante européia de nossa língua. Além disso, o escritor é nascido e criado em São Luís do Maranhão, cidade que, na época, ainda mantinha fortíssimos vínculos com Portugal, influenciando até em sua linguagem).
 
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