PROFª DRª
VERA LÚCIA GRANDO
LÍNGUA
PORTUGUESA
VOZ PASSIVA
DUAS ESTRUTURAS DIFERENTES QUE PARECEM IGUAIS
Tomemos as duas estruturas que seguem:
I)
Anulou-se o contrato.
II)
Desistiu-se do contrato.
Se
permutássemos contrato ( no
singular) por contratos ( no plural)
e pedíssemos que se reescrevessem os dois enunciados, a grande maioria dos
falantes do Português atual não teria dúvida e escreveria:
III)
Anulou-se os
contratos.
IV)
Desistiu-se dos
contratos.
Isso é uma
demonstração clara de que, para a maioria dos falantes, não há diferença entre
as duas estruturas apresentadas.
Para a
intuição da grande maioria, o sujeito está indeterminado tanto na primeira
quanto na segunda frase. Caso contrário,
deveria haver diferença de usos.
Na variante
culta escrita, porém, há diferenças nítidas entre os dois enunciados acima transcritos:
I)
Anularam-se os contratos.
II)
Desistiu-se dos contratos.
Em I, o verbo
foi para o plural, concordando com o substantivo contratos. Em II, o verbo
ficou no singular, mesmo com o substantivo contratos no plural.
Essa
diferença se explica pela seguinte razão: na variante culta escrita, o
substantivo contratos é interpretado como sujeito do verbo, o que obriga a
haver concordância; na variante popular, não.
UMA INTUIÇÃO EM DESAPARECIMENTO
O que ocorre
de fato é que a maioria dos falantes do Português contemporâneo perdeu a
intuição de que o pronome se pode funcionar como um instrumento para apassivar o verbo ou, para usar a nomenclatura
consagrada, como partícula apassivadora.
Mas não é
difícil recuperar essa intuição, sobretudo se considerarmos esse pronome em
certas frases em que o papel de partícula apassivadora
se mantém evidente até hoje.
Tomemos uma
frase como esta:
Este clube se
formou de poucos sócios.
Qualquer
falante do português atual não hesitaria em dizer que a frase acima tem o mesmo
sentido e a mesma estrutura que a esta outra:
Este clube foi formado por poucos sócios.
Essa
percepção é correta, pois:
a)
em ambas o sujeito e´ este clube. Prova disso é que, em ambas, o verbo concorda com o
mesmo termo ( este clube):
Estes clubes se formaram de poucos sócios.
Estes clubes foram formados por poucos sócios.
b)
ambas admitem a seguinte transformação:
Poucos sócios formaram este clube.
Nessa transformação:
. o que era sujeito ( este clube ) passou a ser objeto direto;
. o que era agente da voz passiva ( por
poucos sócios ) passou a ser sujeito.
Ora, essa é a própria transformação da voz passiva em voz ativa, sinal
de que ambas as frases inicialmente confrontadas estão na voz passiva, com uma diferença:
. num caso caso, a voz passiva é formada pelo pronome se apassivador mais a terceira
pessoa do verbo:
Este clube se formou de poucos
sócios.
Trata-se da VOZ PASSIVA SINTÉTICA.
. noutro caso, a voz passiva é formada pelo verbo ser mais o particípio do
verbo principal ( terminação do,da,dos,das)
. Trata-se da VOZ PASSIVA ANALÍTICA.
Esquematicamente teremos:
Este clube
|
se formou
|
de poucos sócios
|
voz
passiva sintética
|
Este clube
|
foi formado
|
por poucos sócios
|
voz passiva analítica
|
Sujeito paciente
|
Verbo passivo
|
Agente
da voz passiva
|
Transformadas na voz ativa, as duas frases equivalem a :
Poucos sócios
|
formaram
|
este clube
|
Sujeito
agente
|
Verbo ativo
|
Objeto
direto
|
VOZ PASSIVA NO PORTUGUÊS CLÁSSICO
No Português
clássico a voz passiva sintética coexistia com a
voz passiva analítica mais
freqüentemente. Em Camões encontram-se
frases como estas, que vêm parafraseadas para facilitar a compreensão:
Esta terra se
habita dessa gente sem lei.
= Esta terra é habitada por essa gente sem
lei.
Este mar se navega
de cruéis marinheiros
=Este mar é navegado por cruéis
marinheiros.
Em
Vieira encontramos:
A virtude ama-se
dos bons.
= A virtude é amada pelos bons.
No Português
contemporâneo, porém, quando se usa a voz passiva sintética, na grande
maioria dos casos omite-se o agente da voz passiva e inverte-se a
posição do sujeito, que passa a vir posposto ao verbo.
Exemplificando
essas transformações, temos:
1-
Frase inteira:
Essa terra
|
se
habita
|
dessa
gente sem lei
|
sujeito paciente
|
verbo
na voz passiva sintética
|
agente
da voz passiva
|
2-
Frase com apagamento do agente:
Essa terra
|
se
habita
|
|
sujeito paciente
|
Verbo
na voz passiva sintética
|
agente
da passiva apagado
|
3-Frase com inversão da posição do sujeito:
Habita-se
|
esta terra
|
Verbo passivo na voz passiva sintética
|
Sujeito
paciente ( posposto)
|
Esta transformação, com a inversão da posição do sujeito, afetou a intuição do falante, induzindo-o a
pressupor que, em frases desse tipo:
. o sujeito é indeterminado;
. o se é índice de indeterminação do sujeito;
. esta terra é objeto
indireto.
Tanto é verdade que, na fala popular, não se faz mais a concordância
do verbo com o sujeito, dando origem a dois usos nitidamente distintos no
Português atual.
Exemplos:
Variante popular
|
Variante culta
|
Aluga-se
quartos.
|
Alugam-se
quartos.
|
Vende-se
apartamentos.
|
Vendem-se
apartamentos.
|
Conserta-se
relógios.
|
Consertam-se
relógios.
|
Forra-se
botões.
|
Forram-se
botões.
|
Espalhou-se
boatos.
|
Espalharam-se
boatos.
|
MARCAS
DA PASSIVA COM O “SE” APASSIVADOR
Como dissemos, no Português contemporâneo não é mais intuitivo o
renhecimento do pronome se como apassivador. È preciso, pois, reconhecê-lo
por meio da observação planejada das marcas típicas da frase em que se aloja esse
pronome.
O pronome se apassivador só
ocorre em frases que apresentam as seguintes características:
. verbo na 3ª pessoa ( singular e plural);
.pronome se;
. um substantivo não precedido de preposição.
Presentes essas três condições, e sendo possível passar a mesma frase
para a voz passiva analítica (
verbo ser+ particípio), temos então a seguinte análise:
. o se é partícula apassivadora;
. o substantivo sem preposição é o sujeito;
. a frase está na voz passiva
sintética.
Nesse caso, o verbo estará sempre em concordância com o sujeito.
Exemplo:
Não se apanham moscas com vinagre.
Nessa frase há:
. um verbo na 3ª pessoa ( apanham);
.o pronome ( se);
. um substantivo não precedido de preposição (moscas).
A mesma frase pode ser parafraseada assim:
Moscas não são apanhadas com vinagre.
Então:
. o se é partícula apassivadora;
.moscas é o sujeito;
A frase está na voz passiva sintética.
ÍNDICE
DE INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO
Observe o trecho que segue:
Um famoso jogador do Santos
Futebol Clube disse que, no momento, recusaria
qualquer proposta para ir jogar na Europa, alegando que não se sai de um clube no momento do campeonato.
Note que o sujeito dos
verbos recusaria, ir jogar e alegando é determinado: nos três casos
está elíptico (ou apagado); nos três casos poderia vir explicitado por ele
( um famoso jogador dos Santos Futebol Clube). O mesmo não se dá com
o sujeito de sai, que não pode ser
explicitado pelo mesmo pronome (ele) dos
casos anteriores. Se, entretanto, retirarmos o se de junto do verbo, o sujeito passa a ser determinado elíptico (ele),
como os outros.
Como se nota, o pronome se
nesse trecho cumpre a função de indicar que o sujeito do verbo ao qual se liga está indeterminado: não pode ser preenchido por nenhuma palavra do
contexto. Por isso, em casos como esse, o pronome se é analisado como índice
de indeterminação do sujeito.
Analisando as frases apenas sob o ponto de vista do significado, o
pronome se apassivador e o índice de
indeterminação do sujeito produzem o mesmo efeito: indeterminam o agente
responsável pela ação verbal. Mas, do ponto de vista da estrutura sintática, as
frases são diferentes.
Quando o “se” funciona como índice
de indeterminação do sujeito, não ocorrem na frase as três condições que se
dão quando se trata de partícula
apassivadora e, portanto, não é possível converter a frase para a voz
passiva com o verbo ser.
Exemplo:
Desistiu-se do contrato
Nessa frase há um verbo na
terceira pessoa (desistiu),
há o pronome se, mas não há um
substantivo desacompanhado de preposição. Além disso, não é possível converter
a frase para a voz passiva analítica. O sujeito do verbo não
pode vir explicitado pelo pronome ele. Então:
. o se é índice de indeterminação do sujeito;
. o sujeito é indeterminado;
. a frase está na voz ativa,
. do contrato é objeto indireto.
Note-se ainda que, quando se
funciona como índice de indeterminação do sujeito, o verbo a que se liga fica
sempre na 3ª pessoa do singular.
Observação : reprodução de texto
na íntegra.
Referência:
PLATÃO , Francisco. Português. Gramática e Texto. Ensino
Médio . Livro – texto, 2ª série.São Paulo, Anglo, 2001, págs.86-89.
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